Jornal Universitário de Coimbra A CABRA
“Espero matar o Dali”
A diferença entre a realidade e a ficção, a verdade e a mentira integram “Hysteria”, peça de teatro que estreia dia, quinta-feira, 23, no TAGV
Hampstead. Londres. Ano de 1938. Um homem de cabelo e barba branca, adoentado, de óculos redondos sobre o nariz, senta-se no seu divã. Está sereno. Vindos da rua, gritos de uma mulher abalam esse sossego. Freud inquieta-se e dirige-se à porta.
A peça, representada pela primeira vez no Royal Court Theatre de Londres, em 1993, não teve até agora tradução para a língua portuguesa. Coube a João Paulo Moreira adaptar a trama, “facilitando-lhe a compreensão para a linguagem teatral”, refere o actor Fernando Taborda.
Da autoria de Terry Johnson, a peça apresenta-nos o encontro entre o pai da psicanálise, Freud, e Dali, mestre surrealista. Esta improvável junção de personagens coabita num misto de comédia e tragédia, onde o espectador pode retirar as suas próprias conclusões.
Chove lá fora. Jessica entra na sala e não de pára de gritar. Freud fica confuso com esta visita, deixando transparecer o cansaço característico da sua fragilidade. Histericamente, a mulher vai criando um enredo que prende quem vê. Levanta questões que assombram o pai da psicanálise e abre caminho à chegada de outras personagens. Para o encenador, José Geraldo, “o texto é fascinante a vários níveis. As personagens que entram na peça e os problemas que representam são actuais e apelativos”.
O conceito de juntar Freud e Dali num mesmo momento, em nada restringe quem pode ver a peça. “O espectáculo é perfeitamente simples, sem grandes reflexões e discursos”, aponta Rui Damasceno, actor que dá vida ao pintor surrealista.
A história não fica retida no seu tempo. O encontro entre o pai da psicanálise e Dali, em 1938, acompanha todo o caminho humano, transposto ao longo de toda a peça. O texto desmistifica os mitos, desconstrói a própria existência e, em rasgos de histeria, adapta-se a cada um de nós. “Existem muitas camadas, entre elas, o consciente e o inconsciente, e quem vê a peça pode ler a camada que quiser”, sublinha o encenador.
Num misto de situações pesadas e simultaneamente sérias, e no retrato de episódios burlescos, as personagens vão surgindo pouco a pouco.
“No teatro, se não trouxer nada de novo não presta”
“Há realmente uma luta entre estes três megalómanos, um da psique, outro da pintura, baforada cómica da peça, e outro da religião”, comenta Fernando Taborda. O drama já não se distingue da comédia mas integra-se nela. A caricatura de Dali é feita por necessidade, para rasgar a ideia que o público tem da personagem. “Espero matar Dali” é o objectivo que Rui Damasceno pretende fazer na interpretação do pintor catalão.
O lado sério de composição da personagem, da corporalidade e interioridade é a dificuldade encontrada pelos actores. Ricardo Correia que interpreta Freud aponta que a criação do jogo entre o real e o ficcionado “tem de ser algo verosímil e não um boneco”. Ao contrário de Dali, a personagem de Freud tenta manter-se na realidade.
Os apoios para o exercício do teatro em Coimbra continuam ainda longe da realidade da arte de palco. Margarida Mendes Silva, produtora e autora do projecto “Hysteria” afirma que é muito complicado arranjar espaços na cidade. “É uma luta muito inglória mas conseguimos com o inestimável apoio do Instituto Português da Juventude (IPJ) apresentar este projecto.” Para já o estão marcado espectáculos no TAGV nos dias 23,24 e 25 de Outubro, seguindo-se outra temporada no final de Novembro e início de Dezembro no auditório do IPJ em Coimbra.
A exploração do universo temático de “Hysteria” é o ponto de partida para a realização de uma série de actividades paralelas como um atelier de contos para a infância, uma tertúlia, uma oficina de escrita teatral, um workshop de maquilhagem e uma inauguração de uma exposição plástica.